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Opinião APF: 30 Anos de Planeamento Familiar e de Educação Sexual em Balanço

No próximo dia 24 de Março passam 30 anos sobre a publicação em Diário da República da Lei 3/84 “Direito À Educação Sexual e Acesso ao planeamento Familiar”. 

Esta lei tinha sido votada pela Assembleia da República em Fevereiro desse mesmo ano, num contexto de intensos debates, dentro e fora do parlamento, sobre o aborto, o acesso dos jovens à contraceção (que havia sido restringido em 1981) e à educação sexual, e o crescimento dos serviços de planeamento familiar que estava em curso.

Se a parte relativa ao planeamento familiar foi regulamentada rapidamente (Portaria 52/85), a parte da educação sexual nunca chegou a ser regulamentada. Só 25 anos mais tarde, foi aprovada legislação que tornou obrigatória a educação sexual nas escolas e definiu com precisão as suas finalidades e enquadramento na dinâmica escolar.

Que balanço podemos fazer, destas três décadas de aplicação da lei?

Desde logo, há que referir que a lei surgiu no momento em que o Serviço Nacional de Saúde, criado poucos anos antes (1979), estava a dar os primeiros passos. Tudo o que se passou desde de aí, no campo da saúde lucrou com este processo.

Em primeiro lugar, a lei, e sobretudo a portaria 52/85, tornou-se um referencial para todos os serviços e profissionais de saúde, definindo claramente o que era o planeamento familiar e quais os tipos de cuidados nele integrados, que se estendem muito para além da contraceção e englobam a prevenção de várias formas de cancro, a promoção da parentalidade positiva, a questão da infertilidade ou as dificuldades sexuais. Tendo em conta a organização do Serviço Nacional de Saúde, podemos dizer que, a partir da década de 80, generalizou-se de forma quase universal, o acesso ao planeamento familiar e à contraceção. No entanto, se se ganhou no acesso, perdeu-se por vezes em qualidade, sobretudo nas componentes educativas e de aconselhamento em planeamento familiar e contraceção.

Mesmo assim, segundo o último relatório do UNFPA – United Nations Population Fund (2013), Portugal é o 2º país do mundo com maior uso de contraceção (cerca de 87% das mulheres não grávidas nem à espera de engravidar e sexualmente ativas usam um método de contraceção), a seguir à Noruega e antes do Reino Unido. O facto de a taxa de aborto em Portugal ser inferior à média europeia e à da maioria dos países europeus (tais como a Suécia, a França, a Espanha ou o Reino Unido) e o facto de o número de IVG estar a diminuir, indicam o significativo sucesso na prevenção das gravidezes não desejadas e do consequente recurso ao aborto, através da educação contracetiva e do acesso aos cuidados de planeamento familiar previstos na lei.

Em segundo lugar, esta lei eliminou as barreiras legais do acesso dos jovens ao planeamento familiar. De facto, a lei dispõe que qualquer jovem “em idade fértil” pode fazê-lo. O que aconteceu é que muitos centros de saúde partiram para a organização de consultas para jovens (algumas designadas por CAJ – Centros de Atendimento de Jovens) que permitiram o atendimento de muitos milhares de jovens ao longo dos anos. Mesmo que o acesso a estas consultas nunca tenha sido universal, muitos milhares de jovens que necessitavam de contraceção encontraram um serviço de proximidade que respondeu às suas necessidades. Em 1998, o IPDJ – Instituto Português do Desporto e Juventude criou, ao abrigo da Lei 3/84, e em parceria com a APF – Associação para o Planeamento da Família, uma linha de ajuda – “Sexualidade em linha” – que recebeu, desde então, mais de cem mil chamadas de jovens, encaminhando alguns milhares para as consultas existentes, quando solicitado.

No início da década de 80, em 1984, 37,2 adolescentes em cada mil tinham filhos. Em 2012 tal acontece somente em 12,2 por mil. Ou seja, uma diminuição enorme deste fenómeno. Também os dados da DGS sobre a IVG em adolescentes indicam uma diminuição progressiva, sendo que, nesta faixa etária, também estamos abaixo da média europeia. No entanto, são ainda quase 5000 raparigas com menos de 19 anos que engravidam anualmente. Cerca de 1/3 interrompe a gravidez.

Falemos agora da educação sexual nas escolas. Como foi dito, o Ministério da Educação (ME) nunca regulamentou a lei, até porque, a iniciativa política estava mais nos atores da saúde do que nos da educação. No entanto, a Lei 3/84 comprometeu o Estado português a desenvolver a educação sexual na escola e o tema tornou-se uma exigência recorrente na sociedade portuguesa. A APF e outras ONG, os profissionais e a comunicação social, as associações de estudantes, os próprios decisores políticos nunca deixaram de clamar pela educação sexual.

E foram acontecendo sempre coisas positivas a este nível como, por exemplo: muitos professores receberam formação, criaram-se alguns programas e projetos no ME para a promoção da Saúde onde a educação sexual foi sendo incluída.

Em 2009, a Assembleia da República aprovou a Lei 60/2009, que veio acelerar este processo e mais escolas foram envolvidas.

Sabemos que muitas escolas já integram, de forma regular, projetos e atividades de educação para a saúde onde a educação sexual é uma das áreas de trabalho. Alguns estudos sobre os conhecimentos dos jovens sobre sexualidade e contraceção revelaram que uma parcela significativa dos jovens recebeu informação sobre estes temas na escola. No entanto, sabemos também que esta situação não é, de forma nenhuma, generalizada.

A APF teve, neste processo, um papel essencial. Por um lado, exigindo a aplicação da legislação existente, desenvolvendo diversos estudos de avaliação da implementação destas políticas, apresentando propostas aos decisores políticos. Por outro lado, fomos desenvolvendo experiências pioneiras, nomeadamente na abertura de serviços para jovens e adolescentes, na formação de professores e na produção de materiais de educação sexual.

Ontem como hoje, o conhecimento, o acesso à informação e à educação, o acesso aos cuidados de saúde, são direitos essenciais para que as pessoas possam fazer escolhas livres, informadas e conscientes na sua vida sexual e nas suas decisões reprodutivas. E se este balanço é francamente positivo, resta saber que problemas e desafios se colocam nestas áreas, passados 30 anos.

Em primeiro lugar, temos assistido com alguma regularidade a falhas no abastecimento de contracetivos aos centros de saúde, e destes à população. Em 2014, o Ministério da Saúde realizou cortes consideráveis nas quantidades de alguns dos métodos contracetivos a adquirir pelo Serviço Nacional de Saúde.

Em segundo lugar, o acesso a alguns métodos contracetivos é desigual. Existem regiões do país onde alguns dos métodos não são disponibilizados (por exemplo o anel vaginal) porque as administrações regionais de saúde entendem não os adquirir, contra o parecer dos profissionais de saúde dessas regiões.

Em terceiro lugar, tem-se assistido ao encerramento de diversos serviços de saúde para jovens, nomeadamente nos grandes centros urbanos. Ou seja, tem havido retrocessos no acesso dos jovens aos serviços de saúde e à contraceção.

Em quarto lugar, o envolvimento dos homens na contraceção é francamente dececionante quando nos comparamos com outros países europeus. O uso do preservativo é mais baixo e sobretudo o recurso à vasectomia (esterilização masculina) é irrelevante.

A concluir, muitas vezes o planeamento familiar é apontado como uma das causas do declínio da natalidade. De facto, a contraceção é uma forma de controlo da natalidade, mas são as condições de vida, a satisfação e a esperança no futuro, a conciliação entre a vida profissional e familiar que estão na base das decisões dos casais sobre quantos filhos desejam ter, e quando os querem ter. A como todos sabemos, Portugal, sobretudo nos últimos anos, não tem sido um bom país para se ter filhos.

Duarte Vilar
Sociólogo
Diretor Executivo da APF