Mutilação Genital Feminina - Dr.ª Lisa Vicente | Associação para o Planeamento da Família

Mutilação Genital Feminina - Dr.ª Lisa Vicente

Muitas mulheres que vivem em Portugal foram submetidas a esta tradição. O facto de terem passado por este evento é importante no modo como interagem na intimidade, nos relacionamentos afectivos e na vida em geral.

Em Portugal também há meninas que podem vir a ser submetidas a esta prática, por exemplo, durante umas férias no país de origem dos seus pais.

Por isso, trabalhar na prevenção desta prática está na mão de todos nós, dando a conhecer as suas complicações e consequências, clarificando que não tem uma fundamentação sólida mesmo em termos religiosos, que é ilegal em Portugal e em muitos outros países.

O QUE É?

A mutilação genital feminina (MGF) consiste na remoção parcial ou total dos órgãos genitais externos femininos sem indicação médica. A vulva é cortada mas, dependendo das razões por que é praticada, existem diferentes tipos de mutilação/corte.

QUAIS OS DIFERENTES TIPOS DE MGF?

A classificação actualmente aceite a nível internacional é a da Organização Mundial da Saúde de 2007 (OMS), que considera a MGF em quatro tipos:

  • MGF tipo I: existe a remoção total ou parcial do clítoris. Inclui também as situações em que há apenas a excisão do prepúcio do clítoris. É frequentemente designada por clitoridectomia.
  • MGF tipo II: inclui o corte dos pequenos lábios, associado ou não ao corte do clítoris e/ou dos grandes lábios. O que o distingue do tipo III é não existir estreitamento do intróito vaginal («entrada vaginal»).
  • MGF tipo III: abrange os cortes em que existe estreitamento do intróito vaginal. O procedimento consiste no corte e aposição dos pequenos e/ou grandes lábios. Esta cicatrização por aposição dos bordos cortados dá origem a uma área de fibrose descrita como «membrana selante». Nestes casos há um orifício vaginal de dimensão variável, dependendo da extensão do corte e da cicatrização. É também designada infibulação.
  • MGF tipo IV: inclui os cortes não classificáveis nos outros tipos. Enquadram-se neste caso práticas como a escarificação, incisões e perfuração realizadas com intuito ritual e sem indicação médica. A OMS inclui neste grupo a prática de alongamento dos pequenos lábios.

PORQUE SE FAZ?

É realizada em vários países do continente africano e no Médio Oriente e está frequentemente associada a um ritual de iniciação ou de purificação das crianças do sexo feminino. Entre as diferentes comunidades que mantêm esta prática encontram-se ainda outras razões para a sua realização: a preservação da castidade, da moralidade e da virgindade das raparigas.

É importante salientar que nestas comunidades a mulher não mutilada/excisada/submetida ao corte é considerada «impura». O que explica porque muitos pais querem fazer a prática às suas filhas.

QUAIS AS SUAS CONSEQUÊNCIAS?

Durante o ritual algumas meninas morrem na sequência de hemorragia aguda, infecção e choque séptico. Nunca é demais realçar esta realidade. Entre as complicações agudas descrevem-se ainda: dor intensa, hemorragia, dificuldade em urinar ou defecar. Está ainda descrita a infecção por diferentes agentes (por exemplo, hepatite B, hepatite C ou infecção pelo vírus da imunodeficiência humana — VIH) porque os utensílios utilizados são usados em todas as meninas, sem cuidados de desinfeção. As complicações a longo prazo variam bastante de acordo com o tipo de mutilação genital praticada. Estão descritas várias consequências psicológicas, urológicas, ginecológicas e de resposta sexual.

ENQUADRAMENTO LEGAL

No Código Penal Português (artigo 144.°-A) as práticas de MGF são um crime punível por lei com pena de prisão. São também considerados crime todos os actos preparatórios de MGF, nomeadamente levar as mulheres ou crianças a viajarem para fora do país com o objectivo de serem submetidas a MGF.

UMA REALIDADE EM MUDANÇA

Decorrente dos fluxos migratórios ao longo da história e na actualidade, na Europa cada país recebe mulheres de diferentes países onde se pratica a MGF. Em Portugal, a maioria das mulheres que foram submetidas a esta prática são oriundas da Guiné-Bissau, Guiné-Conacri e do Senegal. São países onde estão descritas diferentes prevalências para esta prática, por exemplo 96% na Guiné-Conacri, 50% na Guiné-Bissau e 26% no Senegal.

Actualmente Portugal recebe mulheres oriundas de outros países, entre os quais a Eritreia, o Sudão e a Somália, onde a prática da MGF tipo III é muito frequente (superior a 80%).

PARA AS MULHERES QUE PASSARAM PELO CORTE

Ao longos dos anos fui conhecendo várias mulheres que foram submetidas ao corte. Algumas não gostam da expressão mutilação, outras usam esta designação. Muitas não falam desta questão, nem com as pessoas mais próximas. Outras falam com os seus parceiros. Outras tornaram-se activistas e «dão a cara» em entrevistas e projectos para contribuírem para a erradicação desta prática.

Para todas elas, algumas mensagens importantes:

  • Falar do que aconteceu, que é mais do que a questão física, é memória de dor, pode ser bom. É tornar real e consciente um momento que muitas vezes se viveu em solidão. Mas se prefere não o fazer, também não é «essencial» falar quando não se sentir confortável.
  • As mulheres submetidas ao corte «não são mais frias». Esta é uma preocupação que encontrei muitas vezes: «O meu homem gostava de ter uma mulher mais quente.» Uma dúvida na cabeça de muitas mulheres. Acredite que pode ser «tão quente» quanto as outras.
  • Todos os tipos de MGF podem provocar alterações no modo como vive as suas relações de intimidade e a sexualidade. Quer seja pelas consequências físicas (por exemplo, dor recorrente durante a relação sexual com penetração vaginal), quer pelas consequências psicológicas. Por isso, se sente dor ou dificuldades durante as relações sexuais, deve procurar ajuda através de associações e organizações que trabalham esta questão para ser observada por profissionais de saúde com formação específica. Em algumas situações podem existir alterações passíveis de serem corrigidas ou tratadas.
  • Saiba que há várias mulheres submetidas à prática (algumas com livros e textos publicados internacionalmente) que descrevem que este facto não as impede de obterem prazer sexual. A estimulação de outras zonas erógenas, a qualidade do relacionamento e a compreensão do parceiro (ou parceira) são aspectos fundamentais na sua satisfação sexual.

@lisafvicente

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